a ponte entre Oriente e Ocidente
Eva Spitz, jornalista
Jornal Tao do Taoísmo – n. 11 índice
A aproximação entre a ciência moderna e o velho conhecimento oriental está gerando novas maneiras de pensar o mundo.
Por que será que o roçar de asas de uma borboleta na Amazônia pode provocar um tufão na Índia? A mecânica quântica garante que isso é comprovável cientificamente, desde que, no início do século, constatou-se que o nosso universo não é estático: está em constante expansão e movimento. Assim, todos os fenômenos têm conexões uns com os outros. Mesmo quando não mantém uma relação entre si, eles interagem no universo cósmico. Entretanto, isto não é facilmente assimilável pelo arraigado pensamento ocidental.
O mistério que envolve fenômenos aparentemente antagônicos mas que se complementam, só neste século vem estimulando mais fortemente as investigações científicas e as especulações teóricas no plano do conhecimento. A ponto de todas as principais descobertas do século XX estarem intimamente ligadas a essa antiqüíssima maneira de ver a vida pelos chineses: o laser, as telecomunicações, o radar, a engenharia genética, a biologia molecular, a química, a bomba atômica, os chips que deram origem aos microcomputadores, etc.
O lugar do vazio é também o lugar da energia, da matéria.
Para os orientais de linhagem taoísta, essa constatação nunca foi objeto de questionamento. Era, e continua sendo, uma verdade inquestionável. Entretanto, a visão difundida por mestre Lao Tse, o patriarca do taoísmo, há três mil anos, só agora está sendo assimilada no Ocidente. Muito se deve, com certeza, aos movimentos da contracultura dos anos 60, que deram início a uma onda de reverência aos ensinamentos transmitidos pelos mestres do oriente.
Hoje a aproximação dos dois pontos de vista se mostram inevitáveis: tao da física, tao do amor, tao da música, tao da ecologia. De repente, os títulos começam a se suceder, no que diz respeito à livre associação entre os temas recorrentes no universo de pensamento do Ocidente com a filosofia ancestral de origem chinesa. Sinal dos tempos?
A forte suspeita, que já atravessa décadas no nosso século, de que o universo se criou de uma grande explosão dando origem à Terra, às estrelas e aos bilhões de galáxias, foi comprovada por astrofísicos norte-americanos a partir de um satélite da Nasa, que descobriu marcas de nascença de conglomerados de estrelas numa região distante mais de 14 bilhões de anos-luz do sistema solar, hoje menos fantasmas do que eram.
Para os taoístas, que vêm desenvolvendo suas crenças há mais de 7 mil anos, nunca houve dúvidas a esse respeito. Os chineses de tempos imemoriais sempre acreditaram que o universo se criou a partir de uma bolha, ou de um ponto mínimo, do qual se originou o universo manifesto. Para eles, o vazio e o absoluto são a mesma coisa. Na verdade, os cientistas contemporâneos chegaram à mesma conclusão: o lugar do vazio é também o lugar da energia, da matéria.
A matéria em estado de condensação absoluta teria implodido há 15 bilhões de anos, segundo os cálculos dos cientistas, e deu origem, em linguagem oriental, às duas forças máximas que regem a vida: o Yin e o Yang. E dessa dualidade sempre em oposição e, ao mesmo tempo, complementar, surgiram o Céu, a Terra, e o Homem (bem entendido, todos os seres vivos). “O absoluto é o princípio de um sopro que se manifesta em tríplice transparência”, ensina o sacerdote taoísta Wu Jyh Cherng, fundador da primeira sociedade taoísta do país.
A primeira aproximação oficial da ciência com esse misto de filosofia, medicina e religião oriental foi feita na década de 70 pelo físico Fritzjof Capra, numa conferência que se transformou no primeiro dos dois livros que escreveu sobre o assunto, “O Tao da Física”, publicado em 1978. Ele percebeu um espantoso paralelismo entre os enunciados da física moderna com os preceitos da Filosofia oriental.
O universo pode ser concebido como um desdobramento do vazio.
“Capra, na verdade, apenas veio no rastro de todos os grandes cientistas que construíram a base da ciência contemporânea como Einstein, Eddington, Schrodinger, Heisenberg, Born, Bohn”, destaca o cosmólogo Luis Alberto Resende de Oliveira, conferencista da Universidade Livre e pesquisador assistente do grupo de Cosmologia e Gravitação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele, um conhecido defensor da tese de Capra nos meios acadêmicos, acredita que todos os cientistas acima citados podem tranqüilamente ser chamados de místicos, pois todos sempre se preocuparam com a fundamentação metafísica do conhecimento sobre a natureza.
O que marca, segundo ele, a diferença de enfoques entre as físicas clássica e moderna é a descoberta, que vem deste século, de que o nosso universo pode ser concebido como um desdobramento do vazio. “O vazio passou a ser o domínio da realidade onde se dá a mais intensa atividade. O vazio deixou de ser o lugar da ausência para ser o somatório de todas as coisas. É no vazio que as tensões se exercem e os elementos paradoxais interagem”. Na sua opinião, “a idéia que norteava a física clássica de que conhecer o mundo era conhecer as forças que interagem neste mundo fracassou quando começou-se a buscar um maior entendimento do micro e do macrocosmos”.
Só no nosso século, com o advento da mecânica quântica, da física nuclear, da teoria da relatividade, da cosmologia relativística, da teoria dos sistemas longe do equilíbrio, da matemática do caos é que se pôde verificar a afinidade com os preceitos orientais, informa Luis Alberto.
A grosso modo, a física quântica descobriu que os fenômenos físicos se produzem e se reproduzem ora como onda ora como partícula, dependendo da situação. E essa idéia de opostos complementares que interagem é, basicamente, o ovo de Colombo da moderna pesquisa científica. É o que deu origem aos chips de computador, à engenharia genética, à biologia molecular, ao laser, à telecomunicação, “em suma, a absolutamente tudo”. Inclusive à bomba atômica.
“Acredito até que a ética do taoísmo seja muito superior à da ciência, cujo poder está nas mãos dos Estados e os cientistas nada mais são que serviçais do Estado.”
É nesse ponto que o paralelismo entre o taoísmo e a física esbarra em controvérsias. Para o cosmólogo José Salim, professor e pesquisador do mesmo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, atualmente no Canadá, esta aproximação dos dois conceitos faz parte da velha tendência do pensamento científico ocidental de querer se apropriar da “verdade”. Na sua opinião, a questão da dualidade na física realmente se parece com os conceitos orientais de Yin e Yang, mas são de natureza diversa. “No caso da física, quando um impulso de energia se propaga levando energia de um lugar para outro, envolve uma questão ética totalmente diversa da do taoísmo”, diz ele. “Acredito até que a ética do taoísmo seja muito superior à da ciência, cujo poder está nas mãos dos Estados e os cientistas nada mais são que serviçais do Estado”, acrescenta.
A ciência só quer uma coisa, acredita: a dominação. “Mesmo que seja no nível mais bem intencionado possível”. Exemplo: “Por mais benefícios que a ciência possa trazer, como a bomba de cobalto para combater o câncer, ela continua sendo instrumento de dominação, só que da doença. Na medicina chinesa (parte do taoísmo), através da acupuntura, por exemplo, o que se busca é a prevenção. O objetivo é estimular o aparelho imunológico. A acupuntura não serve para dominar a doença. Não faz intervenção violenta. E o taoísmo, por herança mística, não busca a dominação do mundo, mas a compreensão de suas leis e como administrá-lo com sabedoria.”
O professor Luis Alberto não vê o menor sentido nesta discussão: “Acho que só no próximo século, quando se aprofundarão os estudos entre o pensamento (inteligência, subjetivismo, psiquismo) e a existência (materialidade, concretude, substância), é que se poderá compreender essa fantástica ressonância.”
A própria busca do ser humano pode chegar a uma mesma conclusão comum.
Surpreendentemente ou não, para o sacerdote taoísta Cherng, não há nenhuma intenção por parte do Ocidente em querer transfigurar o taoísmo, ou se apropriar do taoísmo. “Vejo como um fenômeno absolutamente natural da compreensão humana. Com todas as diferenças de língua, de cultura, inclusive levando-se em conta a demora da transmissão de conhecimento para o ocidental do que consiste o pensamento oriental, seja o taoísmo, o budismo ou o que for. Para se compreender qualquer coisa, deve-se partir do ponto em que você está. Então é natural que o ocidental tente compreender o Oriente através de uma linguagem inicialmente do próprio Ocidente. A partir daí, pode surgir uma série de linguagens que já não são mais nem semelhantes às do Ocidente antigo, nem do próprio Oriente”, diz Mestre Cherng que é professor de meditação e de teoria taoísta. Na sua opinião, esse encontro do Oriente com o Ocidente “demonstra que a própria busca do ser humano pode chegar a uma mesma conclusão comum. Mesmo quando não se admite a influência no raciocínio ocidental de algum conceito oriundo do conhecimento místico ou das filosofias orientais, mas como o resultado de uma busca natural”, conclui.
A conclusão não é necessariamente racional, nem irracional, mas a soma dos dois.
Cherng faz uma pequena síntese do que é o taoísmo:
O taoísmo não tem nenhuma concepção radical. Segue o conceito da naturalidade. É absolutamente natural ele tentar entender tudo o que acontece de uma forma racional, lógica, pensada e explicada. Mas o taoísmo também fala que existe um outro lado irracional, não-pensante, que transcende o pensamento, que é abstrato, que também faz com que compreendamos as coisas. Não através das linguagens limitadas, da lógica. A conclusão não é necessariamente racional, nem irracional, mas a soma dos dois.
Não é preciso renunciar a um ou a outro. Basta deixar ambos coexistindo.
O taoísmo fala muito de se viver todas as coisas simplesmente, e não intencionalmente. Busca compreender e viver o absoluto, viver além das linguagens, além dos limites. Compreendemos o Tao através de vivência, mas não deixamos de trabalhar com a especulação mental. Meditações e mantras são instrumentos para se chegar a uma vivência. Você usa todas as linguagens para chegar além das linguagens. Você usa palavras, meditações, teorias, cantos, para chegar em não palavras, em não conceitos, em não teorias, e chegar ao absoluto, que é uma espécie de vazio. Mas esse vazio não é ausência de alguma coisa. Ele carrega a potencialidade de todas as coisas.
Há algo completamente entorpecido, anterior à criação do céu e à terra, quieto e ermo, independente e inalterável. Move-se em círculo e não se exaure. Pode-se considerá-lo a Mãe sob o céu. Tao Te Ching, cap. 25