É preciso ficar atento, para evitar infringir a realidade e ficar iludido tal como o personagem de Bruce Willis, que “já morreu e não sabe” no filme O Sexto Sentido.
Oscar Maron Professor e Consultor de Yi Jing (I Ching) Flor de Ameixeira
Jornal Tao do Taoísmo – n. 18 índice
Sempre que o filão da vida após a morte é explorado com inteligência pelo cinema americano – 54% da pragmática população americana acredita no além vida – rende bons filmes, filas nas bilheterias e muitos comentários. Foi assim com Ghost, e mais recentemente com O Sexto Sentido, estrelado por Bruce Willis. Nesse filme o psiquiatra, personagem de Bruce Willis, como diz o ditado popular, “já morreu e não sabe”: seu espírito circula pelo mundo dos vivos, como se ainda vivo fosse e acreditasse ainda estar vivo.
O fato que mantém o suspense durante todo o filme é que a mente do personagem de Bruce Willis cria uma “realidade” na qual o comportamento indiferente dos vivos, em relação a sua “presença” – invisível para eles – está de acordo com a falsa noção de realidade produzida em sua mente. Sua mulher, por exemplo, não fala com ele, porque segundo sua ótica, o casamento está em crise, e por isso “naturalmente”, um não fala com o outro.
E assim, o personagem leva sua “vida” de fantasma no mundo dos vivos, isolado e absorto na ilusão da realidade, até o instante em que, subitamente, descobre que já morreu! Somente nesse momento de choque, ele e também os atônitos expectadores compreendem o sentido da intrigante frase do personagem do menino-médium no filme, ao explicar por que os espíritos atormentados, não conseguem perceber que já morreram:
“Eles (os fantasmas) só vêem aquilo que querem ver”.
Ao final do filme, o personagem fantasma de Bruce Willis, “cai na real” sobre sua ilusão e condição. Descobre que também é um fantasma que julgava erroneamente estar vivo, porque só “via aquilo que queria ver”. Quando se sonha, não se percebe que se sonha, da mesma forma que não percebemos a realidade quando nos iludimos com ela.
Pois é. Ver aquilo que se quer ver. Enxergar somente aquilo que se consegue compreender. Eis o Homem! O Homem, como intérprete da realidade, atua e compreende o mundo a partir do que suas observações permitem: ele não sabe nem é capaz de mais. O pensamento é culturalmente restrito e limitado pelas possibilidades da percepção. Portanto o mundo que o Homem descreve é meramente um mundo construído por ele mesmo, um retrato de si e não do mundo.
Muitas vezes só conseguimos enxergar a aparência da realidade, aquilo que as pessoas e situações demonstram, querem manifestar ou o que conseguimos perceber, sem penetrar na essência dos fatos, das posturas, das intenções e da realidade.
Realidade e Ilusão
O personagem de Bruce Willis, na ilusão de sua mente, estava vivo, enxergando e se relacionando com a “sua realidade”, a partir de sua premissa equivocada. Imobilizado na observação irreal de sua “condição de vida” – como muitas vezes acontece no cotidiano de todos nós – ele não percebe que a sua situação e realidade mudaram: estava vivo e agora está morto. Não tomou consciência de sua condição, porque possuía laços emocionais traumáticos com a situação anterior, e a súbita morte lhe “desconcertou” a consciência.
Em cada instante a vida nasce, morre e se transforma. A realidade da vida não está em mutação, ela é mutação! Por isso, sempre que agirmos, metaforicamente, como o personagem do filme, que “morreu e não sabe”, e continuarmos a atuar no presente como no contexto de uma finada situação anterior, deixaremos de fluir no presente. Sem percebermos a mudança da nossa realidade pessoal, profissional ou afetiva, ficamos prisioneiros do passado e ignorantes da nova realidade.
Na verdade, a ilusão vivida pelo personagem do filme, espreita cada um de nós, tanto nas pequenas coisas como nos pontos chaves da vida. A questão é perceber em nosso destino até que ponto, em diferentes níveis, não estamos continuamente atuando da mesma forma que o personagem do Sexto Sentido. Ou seja: aprisionados e bloqueados pelas fantasias causadas pela percepção ilusória da realidade pessoal e do mundo. Por causa dos apegos, obsessões, carências, traumas, avaliações errôneas, rigidez de pensamento e tudo aquilo que, ao não permitir enxergar a dinâmica da realidade, torna impossível trabalhá-la.
Mister Magoo
O erro de avaliação não é uma falta ocasional: envolve, entrelaça e confunde todas as modalidades de errar, desde o mais comum engano, inadvertência, erro de cálculo, até o desgarramento da realidade e o perder-se de nossas atitudes e nossas decisões. O erro se estabelece quando criamos um juízo, que não está em conformidade com a realidade e cria um falso conhecimento.
O Homem é prisioneiro de seu horizonte, pois a maneira pela qual definimos e interpretamos uma situação é também o modo como nos engajamos na ação. Um grande exemplo dos atropelos causados por uma visão míope da realidade é o famoso desenho animado do divertido míope Mister Magoo. Certa vez, o simpático velhinho Magoo ia para a praia no seu carrinho. Porém, ao ler as placas de sinalização da auto-estrada, foi traído na leitura por sua “visão” e terminou por parar no deserto. Ao chegar lá, inocente e iludido, encontrou um esqueleto na areia. Julgando ser um banhista tomando sol, cumprimentou-o, armou sua barraquinha a seu lado e sentou-se para tomar sol, na areia do deserto, que julgava ser a praia paradisíaca. Ao olhar para o céu, observou então os abutres que pairavam sobre sua cabeça e exclamou extasiado:
– Como são lindos esses papagaios-pipas!
Nem sempre podemos nos dar o luxo de rir de nossos enganos e desenganos. A vida não é um desenho animado, apesar de, muitas vezes, bancarmos o Mister Magoo. O erro, dependendo de seu tamanho e da possibilidade de ser consertado, pode tornar-se um drama. Se avaliarmos errado e entrarmos em desacordo com a realidade, teremos sérios problemas a enfrentar, seja no campo profissional, afetivo, espiritual ou comportamental, trazendo prejuízos não só a nós mesmos, mas a todos os envolvidos.
O mundo em que vivemos é feito conforme a nossa consciência. É fundamental perceber de que modo nossa mente e sentidos percebem a realidade, para compreender como percebemos aquilo que percebemos. Ou seja: o mais importante não é prestar atenção, e sim prestar atenção em como prestamos atenção e percebemos a nós mesmos e o mundo. Dessa forma, é possível desvendar como nossa personalidade lida com a realidade.
Nossos sentimentos nos levam a ver as coisas de forma subjetiva e egocêntrica, sendo o principal erro de avaliação tentar impor aos fatos e à lógica o desejo do nosso ego, quando na verdade são os próprios fatos que criam a lógica.
Se ao interpretar a realidade utilizamos pensamentos, condicionamentos, atitudes viciadas, e idéias fixas que nos isolam da diversidade da realidade e das inúmeras possibilidades do mundo, devemos desenvolver uma consciência que permita perceber, trabalhar e transformar esses vícios de abordagem.
“Cair na Real”
No Oráculo do Yi Jing (I Ching) o ato de infringir a realidade acarreta “arrependimento”, que simboliza a nostalgia do equilíbrio perdido, fruto de um excesso que se transformou em desgaste, exaustão e desconforto. Se não agirmos com comedimento e resguardo no estado de “arrependimento”, e insistirmos em “teimar com a realidade”, fatalmente seremos levados a um estado de desequilíbrio ainda mais grave: o “infortúnio”, fruto da estagnação, perda da energia vital e falta total de comunicação com a realidade. É preciso então, reflexão, força de vontade e humildade, para superar a “humilhação” da situação e retomar a fluidez que o Yi Jing (I Ching) denomina de “boa fortuna”, onde desfrutamos a satisfação e o equilíbrio com a nossa existência e realidade.
O primeiro passo a ser dado para encontrar o estado de “boa fortuna” descrita no Yi Jing (I Ching) é “cair na real”. A transformação pessoal depende da conscientização, da clareza sobre quem somos e como somos no cotidiano.
O Oráculo no mundo contemporâneo
Avaliar a Realidade: essa é a função do Oráculo do Yi Jing (I Ching). O Yi Jing (I Ching) abre acesso à Lei (fa) do Tao que governa o Mundo e através daí a possibilidade de avaliar a natureza dinâmica da realidade e predizer situações ou acontecimentos. O Oráculo permite o acesso tanto à realidade visível, imediatamente perceptível aos sentidos, como às potencialidades existentes mas não ainda atualizadas. As pessoas que se beneficiam das informações do oráculo estão em vantagem com relação àquelas que não se beneficiam disso.
As respostas do Oráculo revelam o que já está morrendo, declinando, deixando de fazer sentido em nossa realidade e, ao mesmo tempo, permitem obter a visão antecipada para distinguir aquilo que está nascendo, brotando em cada momento da vida, para que possamos explorar as potencialidades das mudanças, e encontrar a realização e a felicidade.
Desvelar a realidade e indicar como exercer, em cada situação a sabedoria do momento, é a função central do oráculo do Yi Jing (I Ching). Como bem observou o filósofo e medico chinês contemporâneo Zu-Hui Yang: “compreender a dinâmica da realidade, e predizer o destino, é uma operação absolutamente pragmática e que não tem outra finalidade senão a de exercer a melhor possibilidade de se relacionar com ele e modificá-lo”.
O filme da Vida
Esse benefício da união da mente com a natureza das mutações que o Oráculo do Yi Jing (I Ching) Flor de Ameixeira permite realizar, foi o grande tema do filósofo ocidental Spinoza:
…”O maior bem é o conhecimento da união da mente com a natureza (…) Quanto mais a gente sabe, melhor compreende as forças e a ordem da natureza; quanto mais compreende suas forças ou seu poder, melhor será capaz de dirigir a si mesmo e estabelecer as leis para si mesmo; e quanto mais compreender a ordem da natureza, mais condições terá de se libertar das coisas inúteis; o método é este”.
Aprender a enxergar sem obstáculos entre a mente e a realidade em si, é o sentido do estudo do I Ching. Entre as escolas de Yi Jing (I Ching), o Oráculo do Yi Jing (I Ching) Flor de Ameixeira, utiliza a contemplação de alguns sinais de uma situação que chamam a atenção, para que a situação como um todo se revele. Ou seja: usa o método dinâmico de captar os pequenos sinais externos do cotidiano – acontecimentos, frases, fatos, imagens e sinais que nos chamam atenção no dia a dia – para transformá-los em oráculos que revelam a realidade como ela é. Com esse aprendizado a sabedoria do Oráculo se torna uma extensão da mente do praticante.
O Oráculo não constrange nosso livre arbítrio, ao contrário, o libera, pois somente conhecendo nossa condição de realidade podemos exercê-lo e materializar nossas vidas e destinos da melhor maneira a partir das possibilidades que se abrem.