O Eu e a Garrafa Sem Fundo

Jornal Tao do Taoísmo – n. 20 índice

Se o arqueiro atira uma flecha no vazio, em que ele vai acertar? Vencer o ataque através do vazio é o primeiro fundamento da estratégia chinesa, ou seja, trabalhar com a ausência do ego.

Mestre Wu Jyh CherngSociedade Taoísta do Brasil

No estudo da estratégia, se diz que os grandes mestres de estratégia trabalham com o princípio da ausência do ego. Se as pessoas não tivessem ego, não haveria luta entre elas. Se, por exemplo, você tem um profundo apego por chocolate, quem na verdade tem esse apego? O seu “eu”, que é o seu ego. Com a ausência do ego, não vai existir o apego ao chocolate. Nesse caso, você poderia até comer o chocolate, mas não teria apego a ele, não seria viciado. Apego é aquilo que você quer. Mais do que isso. É algo que você não consegue deixar de querer. Em outras palavras, apego é vício.

Nós somos viciados em inúmeras coisas. Existem pessoas que são viciadas, por exemplo, em cuidar de outras pessoas. Existem aquelas viciadas em coca-cola, em dinheiro, em ideologia, em sexo e em inúmeras outras coisas. Todos nós temos alguns vícios, de níveis e tipos diferentes. E existem vícios que, normalmente, nem são percebidos como vícios.

Como você poderia não ter vícios? Não tendo um ego, não tendo um “eu”. Se você não tem esse “eu”, como poderia ficar viciado em algo? A ausência do ego faz com que você se torne vazio e, se você é um vazio no sentido da quietude interior (a quietude interior faz com que nos tornemos vazios por dentro), você deixa de ser um alvo para o outro. A ausência do ego coloca seu espírito em estado de quietude, de transparência. Se o arqueiro atira uma flecha no vazio, em que ele vai acertar? Em nada. Então, se você esvazia seu coração, toda força que o seu adversário mandar na sua direção, por mais perversa que seja, não irá acertar em você.

Muitas vezes, você está numa festa ou num lugar público e percebe que, quando vira de costas, uma determinada pessoa dirige a você um olhar insistente e negativo. Você, então, poderia lançar mão de uma técnica muito usada por taoístas nessa situação: respirar umas duas ou três vezes prestando atenção ao ritmo da sua respiração para que ela fique tranqüila; não deixar transparecer no rosto nem nas atitudes externas que percebeu o que está acontecendo; e começar a esvaziar seu interior, imaginando que você todo está se tornando um vazio, restando do seu corpo apenas uma silhueta.

Nessa hora, a energia desconfortável daquele olhar vai passar por você como se estivesse passando por um vazio. Algum tempo depois, você vai notar que aquela pessoa está começando a sentir um cansaço imenso, e vai ficar cada vez mais cansada até desistir de olhar para sua direção.

Mas se você receber esse olhar e, por não estar esvaziado, for atingido por ele, ou seja, se a pessoa conseguir acertar você com aquela energia perversa, essa mesma energia vai voltar para ela e realimentá-la.

No caso contrário, se o olhar dela não conseguir acertar você, ela vai estar, apenas, jogando energia fora. É como se ela estivesse atirando no vazio: as balas do revólver vão acabar e ela não terá acertado em alvo algum, em nada.

Essa técnica de esvaziamento é muito fácil de ser praticada. Ela é muito usada para você não precisar lutar contra a pessoa que está dirigindo a energia perversa para você. E praticando esta técnica você vence a energia perversa sem precisar lutar contra a pessoa que a lançou.

Se essa pessoa ficar usando sua força contra o espaço, vai acabar se cansando. É como dar socos no ar: a pessoa vai se cansar e terminar por ser derrotada por si mesma sem que você, que praticou a técnica do esvaziamento pela respiração, precise sacar uma arma para brigar com ela.

Esse é exatamente o ensinamento de como vencer uma ação através da não-ação. Vencer o ataque através do vazio é o primeiro fundamento da estratégia da guerra, ou seja: trabalhar com a ausência do ego.

Raciocine desse modo: se eu não existo, quem poderia estar me atingindo? Mas é preciso tomar cuidado porque ausência de ego não significa não tomar uma atitude quando ela for necessária.

Se você não tiver ego, mesmo que alguém tente lhe ofender, não vai conseguir porque o eu não existe e, portanto, você não pode ser aquilo que a pessoa disse ser. Ela não vai estar falando sobre você – então, vai estar falando sozinha, sem conseguir lhe ofender. No entanto, isso não pode ser um mecanismo de convencimento intelectual. Isso tem de ser o resultado de um esvaziamento interior, de um esvaziamento do eu.

Mas como a ausência do eu é demonstrada na prática, na vida cotidiana? Por meio da tolerância, da aceitação e do coração esvaziado. Uma pessoa que não seja tolerante, acaba por preencher rapidamente o seu limite. Até mesmo popularmente, quando alguém não consegue aceitar mais nada, adota uma expressão facial que demonstra que seu limite foi atingido: “Eu estou cheio, não tenho mais capacidade de tolerar isso, não vou mais tolerar isso”, é o que costuma dizer quem acaba por preencher rapidamente seu limite.

Numa situação como essa, nós nos tornamos “cheios” porque temos um limite que funciona como uma espécie de fundo de garrafa – ou fundo de copo –, que vem a ser, exatamente, o nosso ego. O ego humano é o fundo do nosso copo, da nossa garrafa. O ego faz com que nossa vida, mesmo que seja parcialmente esvaziada, tenha um limite. E a suprema abundância só é adquirida quando nós retiramos esse fundo da garrafa. Desse modo, tudo entra e tudo sai pela garrafa sem fundo e, por isso, a suprema abundância não se esgota.

Um mestre antigo dizia que nós deveríamos saber receber tudo o que vem do mundo e repassar tudo de volta para o mundo. Dessa maneira, a nossa vida torna-se algo vazio e esse vazio permite que a vida flua dentro de nós. É desse processo que vem a alegria sem euforia e a tristeza sem depressão. Vêm coisas saborosas e amargas, e tanto umas quanto outras entram e saem de nós como se estivessem sendo derramadas numa garrafa sem fundo.

Assim, a nossa capacidade tanto de receber quanto de dar nunca termina e, com isso, a vida se torna mais leve porque, nesse momento, deixamos de fluir na vida para deixar a vida fluir em nós. A partir dessa hora nós nos transformamos e ficamos como se fôssemos um tubo por onde a água, que simboliza a vida, passa por nós e vai adiante, fluindo sem parar porque não existe um fundo, um limite que a represe.

De modo contrário, se nós tivermos um fundo, como uma garrafa ou um copo, a água não vai fluir. Ela vai encher essa garrafa até seu limite, depois transbordar, e terminar levando o copo ou a garrafa junto com ela, em vez de passar e sair. Então, a pessoa que tem o ego muito forte é levada pelo destino, em vez de permitir que o destino ou a vida passe por ela.

Quanto mais esvaziados o copo ou a garrafa, mais a água vai fluir e passar dentro de nós, mais o destino vai passar por nós, e seremos donos desse destino. Quanto menos esvaziados, mais obstáculos a água vai encontrar para fluir dentro de nós e, nesse caso, os papéis serão invertidos: nós vamos passar por dentro vida e ela é que será a dona do nosso destino.

Precisamos nos esvaziar para podermos nos tornar receptivos. Sendo receptivos, podemos de fato abraçar todas as coisas e, ao mesmo tempo, permitir que todas as coisas se desenvolvam e se transformem de modo natural e fluido.

O homem iluminado é o que possui a abertura interior.

2 comments

  1. Adoro esses artigos do Jornal do Tao do Taoísmo.

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