Subir a Montanha Sagrada Kun Lun, na China, significa elevar-se espiritualmente.
Vitor Nascimento, Professor – Sacerdote Taoísta – Geólogo e Geógrafo
Jornal Tao do Taoísmo – n. 14 índice
Desde os tempos imemoriais que muitas sociedades tradicionais consideravam que a existência humana só era possível graças a uma comunicação permanente com o mundo celestial.
Esta comunicação era garantida pela existência de aberturas (no alto e embaixo), através das quais colunas ou pilares cósmicos sustentavam e ao mesmo tempo faziam a ligação entre o “nosso” mundo, o que estava acima e o que estava abaixo dele.
Aquelas sociedades consideravam que este eixo (axis mundi) que liga e sustenta o Céu e a Terra possuía uma característica importante: ele se situava no centro do mundo. Mas esse mundo, sagrado por excelência, não era uma mera fantasia, pois para aquelas sociedades, era o sagrado que propiciava o verdadeiro sentido da realidade, isto é, viver o mais próximo possível dos locais das manifestações dos mestres ou divindades, repetir seus gestos, suas palavras, praticar seus ensinamentos, tudo isso fazia com que aquelas pessoas pudessem viver em uma atmosfera impregnada de realidade. Portanto, a manutenção daquela ligação era imprescindível para a existência dos “dez mil seres” (tudo que existe).
Existem algumas imagens que exprimem a ligação com o mundo celestial além da coluna (ou pilar). Entre elas estão a escada, a árvore (ou tronco) e a montanha.
Muitas culturas falam de Montanhas Sagradas que se situam no “centro do mundo”, como o Meru na Índia, o Harabereizati no Irã, o Gerizim na Palestina, o Kun Lun na China, entre tantas outras.
Da mesma forma, muito templos se espelham no simbolismo da Montanha Sagrada, e assim possuem em seus nomes termos que se referem àquela imagem: Templo da Montanha, do Monte ou da Nuvem (que encobre as montanhas), como é o caso do Monastério da Nuvem Branca em Beijing.
Subir a montanha Sagrada significa elevar-se espiritualmente, ao mesmo tempo em que representa também uma viagem ao centro (do mundo). E, se entendermos o centro como origem, então a busca pela Montanha Sagrada significa também o Caminho do Retorno, o retorno à origem, ao Tao.
O Monte Kun Lun
O Kun Lun é uma das Montanhas Sagradas mais importantes da China. Não se sabe o sentido do termo Kun Lun, que a julgar pelo ideograma é anterior à escrita chinesa. Existe o Kun Lun no nível físico: trata-se de uma cadeia de montanhas na região leste da China e que faz parte do conjunto montanhoso dos Himalaias.
O nome da montanha “física” foi dado em homenagem à Montanha Sagrada. Em relação e esta última, conta a tradição taoísta que, quando as cinco forças criativas do universo revelaram seus conhecimentos, criaram assim a ordem no Universo, e nesse momento ergueu-se de um imenso oceano o Monte Kun Lun, que foi assim descrito: “Era uma ilha gigantesca e íngreme, cercada por fortíssimas ondas de nove quebras; sustentava um grande tronco no alto do qual havia um continente (…).”
O Monte Kun Lun inteiro é chamado de “Cidade Inferior do Rei de Jade”, pois representa o mundo material que é governado por ele. O Rei de Jade simboliza a consciência universal. Ainda segundo a tradição, o Kun Lun é a morada de todos os deuses: “Todos os homens sagrados, imortais do mundo sob o Céu, têm seu governo no alto do Monte Kun Lun, no continente da coluna.” Dizem que esta coluna seria feita de bronze polido, com um diâmetro de cerca de três mil léguas e sua altura chegaria aos céus. O Monte Kun Lun Sagrado é entendido como sendo uma escada que conduz ao Céu, já que se trata de uma montanha feita de infinitas dimensões. Existe um Monte Kun Lun acima do outro: quando se consegue entrar no primeiro nível da montanha ainda tem o segundo, terceiro, quarto níveis, e assim sucessivamente. Seguindo o caminho do Monte Kun Lun chega-se à mais alta hierarquia espiritual.
Por isso o Kun Lun é considerado pelo taoísmo como o símbolo da Montanha Sagrada que conduz o praticante à realização da grande obra espiritual.
Antigamente havia uma fotografia em nosso templo, na Sociedade Taoísta do Brasil, do Mestre Liu da Ordem da Espada, da Escola da Tradição dos Imortais Kun Lun (Escola Kun Lun). Mestre Liu queria subir o Monte Kun Lun Sagrado, e para isso buscou uma entrada a partir da montanha “física”. Ele foi para lá e em estado de meditação profunda fez três tentativas para entrar. Na primeira e na segunda não obteve sucesso, mas na terceira conseguiu.
Ao entrar, viu-se em uma grande montanha, com uma grande floresta, diferente do lugar em que estava. Lá encontrou seus mestres e o Patriarca de sua Escola lhe esperando. De lá, ele e um dos mestres começaram a subida da montanha, que era muito alta, e assim levaram dias, semanas para subir. Durante o caminho, o mestre ia explicando a seu discípulo o que era, e o que significava cada lugar, cada planta, animal, rocha, riacho e fonte que encontravam. Havia árvores, animais e toda uma natureza desconhecida da humanidade.
Num dado momento, chegaram a um lugar em que havia uma árvore frondosa, gigantesca, e sob ela, já envolvido pelo cipó, um velhinho sentado em estado meditativo. Sua barba e cabelos longos cobriam o chão. Nesse momento o mestre de Liu disse-lhe: “Não fique aí parado, feche os olhos, ajoelhe-se e reverencie”.
O mestre depois explicou: “aquele em meditação é o nosso patriarca, o primeiro corpo do nosso patriarca, ou seja, ele saiu do mundo físico e entrou no mundo do Kun Lun espiritual. De lá, meditou de novo, transcendeu de novo, criou outro corpo e foi para o outro Monte Kun Lun, deixando o corpo parado lá, em meditação, há centenas de milhares de anos. Ele não está mais naquele corpo, está em outro nível do Kun Lun, mas tem que reverenciar, pois é o primeiro corpo ascencionado do patriarca da Linhagem Kun Lun.”
Portanto, o Patriraca já havia seguido para o segundo ou terceiro nível do Kun Lun, e o Mestre Liu estava ligado ao primeiro nível.
Conta-se que aos 95 anos de idade, Mestre Liu reuniu algumas pessoas entre discípulos e iniciados e falou: “Vou retornar ao Kun Lun”. Então ele se sentou e simplesmente “desligou-se” – o espírito dele foi pelo menos para o primeiro nível e lá deve estar continuando o seu trabalho espiritual para poder ascender aos outros níveis.
A Tradição Taoísta propicia ao praticante caminhos para a realização espiritual e o Kun Lun representa o estágio mais elevado dessa realização. Sua grande altura, forma íngreme e as fortes ondas, indicam que o acesso não é fácil, mas que, com trabalho, torna-se uma condição possível e segura de se atingir, porém, é preciso “dar a partida” com simplicidade, afetividade e humildade. Se o Caminho começa debaixo dos pés, como diz Lao Tsé, então vamos começar, ou melhor, vamos “Retornar ao Kun Lun”.