As Quatro Tarefas: Cegando o corte, desatando o nó, harmonizando-se à luz igualando-se à poeira
Wu Jyh Cherng, Sociedade Taoísta do Brasil
Jornal Tao do Taoísmo – n. 13 índice
Tao Te Ching
Capítulo IV
O Caminho é o Vazio E seu uso jamais o esgota É imensuravelmente profundo e amplo, como a raiz dos dez mil seres
Cegando o corte Desatando o nó Harmonizando-se à luz Igualando-se à poeira
Límpido como a existência eterna Não sei de quem sou filho Venho de antes do Rei Celeste
foto: Lao Tse, com uma das mãos segura um pergaminho e desloca-se em um búfalo de água, com o qual partiu da China para viajar em direção ao Oeste. Século XVII, dinastia Ming, bronze, altura 70cm.
O Tao, ou seja, o Caminho, na condição de Absoluto, é uma espécie de Vazio. Esse Vazio não significa ausência da forma, mas sim a potencialidade de criação de todas as formas. É paralelamente uma condição passiva e criativa. É a origem da existência e a existência propriamente dita, na sua forma integral e nas infinitas possibilidades que fazem parte deste todo. É uma energia inesgotável que encerra a existência em si, estando além da existência; além do tempo e do espaço infinito.
Na meditação taoísta, buscamos um estado interior similar ao Vazio. Nesta condição de esvaziamento é possível que ocorra a captação da energia do Tao, que passará a fluir em nosso corpo de forma desimpedida. Podemos imaginar todos os seres do Universo captando essa energia. Ainda assim, a energia do Absoluto não se esgotará.
O motivo pelo qual o ser humano tem vida e consciência limitada é o apego ao ego. Este apego faz com que o ser humano se considere uma espécie de ser isolado do Absoluto. Este sentimento limita e condiciona a energia vital do ser humano, ou seja, limita e condiciona sua vida.
Na prática espiritual devemos recuperar o modo incondicional de viver, permitindo que toda a energia do Universo passe livremente por nós, de uma maneira completamente desimpedida. Desta forma, nos tornamos mais vivos e ampliamos nossa consciência. Na meditação taoísta, alcançamos esta condição através da fusão da consciência (espírito) com a energia (sopro). Como a energia está presente em tudo e em todos, como algo vital que pode atravessar todas as coisas sem ser impedida, formando uma grande teia invisível que inter-relaciona toda a existência, a partir do momento que conseguirmos fundir consciência e energia, nossa consciência poderá transpassar a matéria física sem impedimentos e estaremos inteiramente integrados ao universo.
A partir de então, nossa energia e consciência serão ilimitadas. A isto se chama Imortalidade – vida (energia) e consciência infinita – união da consciência ilimitada com a energia incondicional que jamais se esgota.
Para alcançarmos a Imortalidade é necessário realizarmos quatro tarefas
“Cegando o corte” – significa tirar o fio, ou melhor, tirar a parte afiada da nossa vida. Afiada tem o sentido de esperta, engenhosa. Ou seja, temos que eliminar a esperteza, a malícia e a engenhosidade para recuperarmos a naturalidade.
“Desatando o nó” – o nó simboliza os bloqueios que existem no ser humano. Sempre que vivemos uma situação difícil, forma-se um trauma, um bloqueio em nosso interior. Desde que nascemos, ao longo de nossas vidas, convivemos com a felicidade, a tristeza, o prazer, o sofrimento, a realização, a frustração, etc. Esses sentimentos formam inúmeros nós em nosso interior. Para que a energia do Absoluto possa fluir livremente, para que nossa consciência possa ser livre para perceber, sentir e compreender, precisamos desatar os nós interiores, precisamos nos desbloquear.
“Harmonizando-se à luz” – Certa vez, mestre Maa me disse : “Cada um de nós tem uma consciência. Essa consciência assemelha-se a luz. Quanto maior o grau de consciência, maior a lucidez. ”Assim, quando um ser atinge o estado de iluminação, ele alcança uma espécie de lucidez plena. Nesta condição, o ser humano passa a contemplar o mundo com extrema clareza. Intrinsecamente, cada um de nós já possui essa lucidez. No entanto, em geral, esta luz está encoberta e reprimida pelas nossas emoções, pelo nosso apego. Para resgatarmos nossa condição original, é necessário primeiro recuperarmos essa luz dentro de nós, para só então unirmos a nossa luz (consciência individual) com a grande fonte de luz (consciência coletiva; consciência universal). A partir desta condição é necessário unirmos a consciência universal com a consciência do Absoluto.
Em resumo, a grande meta consiste em unir uma luz com dez mil luzes, ou seja, com todas as luzes. Quando a luz de uma lanterna se une com as luzes de um salão, deixa de existir a luz individual da lanterna, a qual se incorpora a luz coletiva do salão. Ao mesmo tempo, a luz coletiva passa a fazer parte da luz individual. Em outras palavras, quando a nossa consciência se funde com a consciência universal, a consciência universal passa a ser a nossa consciência. Por este motivo, a consciência individual se expande. Pelo mesmo motivo, podemos entender porque um mestre espiritual tem mais lucidez e discernimento do que uma pessoa comum. Apesar do corpo do mestre espiritual ser equivalente a uma lanterna, sua luz equivale à luz de um potente holofote.
“Igualando-se à poeira” – significa abraçar todas as coisas dentro de si. A partir do momento que a nossa consciência consegue se unir com a consciência que abraça toda a existência, que é a própria consciência do Tao, todos os universos e tudo que existe nestes universos – milhares de seres, planetas e galáxias – tornam-se infinitos pontos de poeira dentro de nós.
O homem comum tem a consciência dentro do corpo, enquanto o homem iluminado tem o corpo dentro da consciência. Normalmente, sentimos que estamos dentro do nosso corpo e não conseguimos ter a consciência daquilo que está fora de nós. Por este motivo, nossa consciência e compreensão vem do interior para o exterior. Por outro lado, o homem iluminado tem a consciência não somente fora do seu corpo, mas também fora de todos os corpos e de todas as formas. Sendo assim, o homem iluminado abraça todos os seres e todas as formas dentro de si, como fossem pontos de luz e de poeira dentro de um mundo de luz. Esse é o sentimento e o estado de quem está iluminado.
Entre os milhões de pontos que estão imersos nessa luz, alguns podem representar os antigos corpos de vidas anteriores, ou até mesmo o corpo atual que ainda vive. No entanto, cada partícula do universo muda; desaparece dando lugar a outras formas. Apesar de toda e qualquer poeira não estar livre do processo de transformação, inclusive o atual corpo do homem iluminado, a consciência permanece. Esse é o estado da Imortalidade.
Em seguida, Lao Zi diz como é o estado da Imortalidade : “Límpido como a existência eterna”. Límpido significa transparente. Existência eterna é o Absoluto. Na teologia taoísta, o Absoluto manifesta-se três vezes Absoluto, sendo representado por três Divindades chamadas de Tríplice Transparência. Logo, aquele que alcança a Imortalidade possui a qualidade transparente do Absoluto.
E Lao Zi continua : “Não sei de quem sou filho”.
Nesta frase Lao Zi está se referindo ao homem que alcança o estado da sagração. Neste estado sua consciência encontra-se no nível do Absoluto, ou seja, sua consciência é uma espécie de vazio que abraça toda a existência. Como não existe nada anterior ao Absoluto, caso contrário este estado não seria Absoluto, o homem sagrado não tem antecessor, ou seja, o homem sagrado não sabe de quem é filho. Ele é a própria essência do Absoluto encarnado num corpo ainda vivo.
Por este motivo, Lao Zi complementa : “Venho de antes do Rei Celeste”. Rei Celeste é a consciência que governa todo o Universo. É a consciência da Onipotência; a consciência Una. Na compreensão do Taoísmo, a consciência Onipotente, o Deus Onipotente, é o Tao em estado manifestado. A consciência do Absoluto, o Deus Absoluto, o vazio que abraça todas as consciências, é o Tao em estado latente. O Tao em estado latente é anterior ao Tao em estado manifestado. Por esta razão, o homem que alcança a sagração, ou seja, o homem que alcança a consciência do Absoluto, é anterior ao Rei Celeste.
O vazio do Absoluto pode ser representado pelo Zero, enquanto a Onipotência pode ser representada pelo Um. A soma do Zero, o Deus Absoluto, com o Um, o Deus Onipotente, forma o Tao como totalidade. Dessa maneira, uma pessoa que alcança a sagração tem a consciência do Zero e o corpo do Um. Ele é o próprio Absoluto, ou seja, ele é o vazio que está por detrás da Onipotência e, simultaneamente, ele é a própria Onipotência. Sua consciência é a consciência do Absoluto, seu corpo é o próprio universo e seu pensamento é o próprio pensamento do Deus Onipotente.
Tao Te Ching A profundidade é o caminho do Mistério
O Tao Te Ching é um texto profundo e ao mesmo tempo simples porque apresenta por meio da linguagem aquilo que se experimenta na sua ausência. A profundidade é o próprio caminho do mistério, a experiência do sagrado que corresponde à vivência espiritual. A simplicidade, um dos três tesouros* dos ensinamentos de Lao Tse, conduz à naturalidade que orienta o indivíduo ao macrocosmo. A leitura do Tao Te Ching implica um desafio: esvaziar-se e ser natural como a água que flui no vale. O desvendamento do texto deve fluir gradualmente, levando à contemplação de suas palavras. Se essas não parecem suficientemente claras, isso se deve ao fato da sociedade contemporânea, na qual prolifera o pensamento, dificultar a ampliação da consciência. Nesse contexto, a contemplação, já é por si um ato transgressor. Lao Tse revela um ensinamento que abrange o tempo infinito. Lao Tse corresponde à transmissão e conservação da tradição taoísta na imagem do mestre, manifestação do absoluto.
* Os Três Tesouros são Humildade, Afetividade e Simplicidade.