Wu Jyh Cherng, Sacerdote Taoísta, Ordem Ortodoxa Unitária, Presidente da Sociedade Taoísta do Brasil
Se você imagina demônios como oposto a deuses e imagina deuses como espíritos iluminados, os demônios seriam as alas obscuras.
Todos nós temos uma consciência dentro de nós. Quando a nossa consciência, o nosso espírito está iluminado, esse deus está dentro de nós, está exercendo e atuando em nós. E quando nossa consciência, nosso espírito está obscuro, esse demônio está exercendo, atuando e vivendo em nós.
Então, todos nós temos uma consciência que poderia atuar de uma maneira obscura ou de uma maneira clara, ou seja, nós temos momentos de clareza e de obscuridade. Por exemplo, quando estamos sendo pressionados e colocados diante de situações criticas e complicadas, às vezes conseguimos enxergar tudo com clareza, solucionar o problema sem nos alterarmos, agindo com serenidade e encontrando um bom desfecho que resulta em perfeita harmonia.
Mas há momentos em que isso não acontece e nós, diante de uma situação similar, reagimos com violência, apego, paixão e rancor. Nessa hora, nosso espírito não está iluminado e não conseguimos enxergar a situação com clareza, transparência e quietude porque aquele demônio está atuando dentro de nós.
Entretanto uma pessoa que esteja atuando sob o céu através do tao não tem seus demônios despertados, ou seja, seus elementos obscuros, seus sentimentos de apego, paixão, violência, rancor, etc. não são despertados.
“Não que seus demônios não sejam despertados, seu despertar não fere o homem” – isso significa que quando é despertado o lado obscuro de uma pessoa que segue o caminho do tao, esse seu lado obscuro não fere ninguém porque até ele se torna harmonioso.
Todos nós temos o yin e o yang dentro de nós e quando eles estão integrados e harmoniosos a pessoa se torna normal e natural. A partir desse momento os seus demônios deixam de ser e passam a ser apenas a obscuridade que existe dentro dela, da mesma forma que se o seu deus deixar de ser deus vai passar a ser apenas a claridade.
A claridade e a obscuridade são dois opostos complementares, como dizemos na aula do I Ching, então o demônio passa a ser a expressão excessiva, radical e desarmoniosa da obscuridade. Dessa forma, se a obscuridade não estivesse em excesso, mas em paz e harmonia, ela não seria o demônio, seria apenas a obscuridade.
Isso é o mesmo que a luz e sombra, fisicamente falando. A sombra é obscura, mas o excesso de sombra torna-se uma coisa perversa à qual damos o nome de demônio, da mesma forma que o excesso de luz também se torna uma coisa perversa.
Se nós tivéssemos apenas a luz, sem o seu complementar que é a sombra, nada sobreviveria. Se tivéssemos somente o dia, sem a noite, provavelmente todas as plantas e nós também estivéssemos mortos de secura. Então, nós precisamos tanto da sombra quanto da luz; tanto do calor quanto do frio.
O que Lao-Tzé está dizendo com essa frase é que aqueles elementos desarmoniosos chamados de demônios interiores ou exteriores, que não passam de uma manifestação excessiva de nossa energia yin, de nossa obscuridade interior, tornam-se harmoniosos quando seguimos o Caminho do Tao. Eles deixam de ser algo nocivo e passam a ser algo harmoniosos, proveitoso e benéfico.
Dessa maneira, vamos trabalhar tanto com a luz quanto com a sombra, com a claridade e a obscuridade, com o dia e a noite de uma maneira harmoniosa. Nessa hora, o sagrado e o mundano se tornam homem: o mundano deixa de ser uma expressão pejorativa, o sagrado deixa de ser distante e inalcançável e o homem passa a viver a integração do dois.
Por isso, basicamente, o taoísmo não incentiva uma separação radical entre as vidas espiritual e mundana. Pelo contrário, o taoísmo diz o tempo inteiro que a vida espiritual tem que ser vivida dentro do mundo em que vivemos, quando estamos trabalhando, quando estamos na fila do banco, na feira, no supermercado, dentro do nosso casamento, do nosso trabalho, na nossa convivência com as outras pessoas, em todas as coisas que fazem parte da nossa vida.
Se você separar o sagrado do mundano, o mundano vai se tornar o demônio e isso acontece com muitas religiões que colocam as coisas mundanas como diabólicas e demoníacas. Mas as coisas mundanas, de fato, só se transformam em demônios quando se separa o sagrado do mundano porque você vai estar querendo separar a luz da sombra, a claridade da obscuridade. Então, nessa situação, tanto a claridade quanto a obscuridade, por se tornarem extremas, vão se tornar perversas.
Tudo que está em torno de nós é mundano, então se o mundano estiver separado do sagrado, tudo que estiver à nossa volta vai passar a ser pecaminoso e demoníaco, enquanto o sagrado vai ficar distante e afastado de nós. Esse extremismo do sagrado, que como todo excesso também é perverso, torna-se uma espécie de autoridade inatingível e muitas vezes com características punitivas, agressivas, violentas e esmagadoras porque fica afastado e alto demais e assim a sua colocação torna-se difícil para nossa vida cotidiana.
Isso leva uma pessoa que esteja seguindo esse caminho espiritual a se debater o tempo todo entre dois extremos muito grandes, criando uma guerra dentro de si, ou seja: seu demônio começa a brigar com seu deus, sua luz começa a brigar co a sua sombra e ela termina esquecendo que a luz e a sombra, o dia e a noite, o consciente e o inconsciente fazem parte do mesmo núcleo, do mesmo universo.
Ela termina, então, se transformando numa espécie de bola de ferro que fica o tempo inteiro correndo entre os dois imas laterais – o positivo e o negativo: ora bate de um lado, ora bate de outro, até se tornar uma pessoa sofrida e exausta. De forma inversa, o taoísmo diz que a vida do homem precisa ser alegre, produtiva, leve, longa, sadia, harmoniosa e feliz.
Você deve viver cada instante sagrado, fazer de cada momento mundano da vida um momento sagrado, fazer da vida mundana uma vida sagrada e fazer com que o sagrado esteja em cada parte da sua vida mundana.
Aí o mundano deixa de ser mundano e passa a ser apenas a vida no mundo e o sagrado deixa de ser sagrado e passa a ser apenas o espiritual no mundo.
Dessa maneira, a vida em si passa a ser vida espiritual e o homem poderá retornar a viver a integridade, passa a ser um homem espiritual e não mais o homem material que quer existir separado do espiritual ou relutando contra o espiritual.
Trecho transcrito da palestra de terça-feira sobre o Tao Te Ching